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Já Não Quero Que a Saudade Regresse!


  Os amigos do princípio eram os companheiros do sonho de infância, povoando o imaginário de aventuras em que do nada se fazia tudo: bastava sonhar! Navegámos dias de todas a cores e, às vezes, tantas, só a preto e branco. Mas o que queríamos mesmo era voar nas asas do sonho. Éramos crianças!
  Desses tempos me chegam aguareladas memórias e de quando em vez, um pequeno arrepio de tristeza esfria-me a nuca. De tão novo me ficaram lembranças de companheiros em quem, já tão cedo, vi mares de egoísmos e maldades das que não alcanço lembrar mais do que esse ligeiro frémito. Éramos crianças!
  Fomos crescendo e, no meu mundo de aventuras, arrastado às costas da família andarilha, de terra em terra, fui deixando e colhendo em toda a parte saudades. Não lembro nomes. Recordo árvores, mato grosso e escuro, em recantos de aventura; savanas poeirentas, lar de feras; picadas de longos, largos e fundos trilhos; areias escaldantes, mordidas de pinha casuar; mar lúcido, feito esmeralda e correria morna, suada. E os sonhos: aqueles em que os meus amigos e eu contávamos os dias. Éramos crianças!
  Sem aviso, caiu sobre mim a avalancha da adolescência. Os amanhãs apartaram-se em miragens que se confundiam com os sonhos que carregava na sacola das minhas curtas lembranças. No colégio, internado a expensas de meu pai, meio mundo além, entrei no mundo da rapaziada. Em cada colega se via um amigo, companheiro e tenaz amparo. Um dia, todos fomos arrancados pela raiz e replantados naqueles quartos, no meio daquela turba de imberbes, lá longe. Os amigos eram então mais já do que simples colegas: eram os nossos irmãos; os nossos familiares chegados. O meu é teu e o teu é meu. Éramos, todos, ainda crianças!
  E deste adro nos partimos, bordão feito de solidão, sacola cheia de amanhãs, calcorreando as estradas para descobrir que os caminhos vão dar sempre a qualquer sítio.
  E fomos! Fomos dar com os ossos, cada um para seu lado, em novos quartos, novos lugares, novos amigos. E foi ficando maior o largo da nossa gente e contudo, parece que não está lá ninguém. De viagem não se fazem amigos, encontram-se companheiros, a espaços. E dentre eles ninguém fica. Todos buscam as asas de sonhos que sonhávamos quando éramos todos crianças!
  Chegaram os incêndios feitos daquela magia que faz andar o mundo. Amores: na areia se enterra o verão e no inverno se rompe o coração! Cada estação é um troço do caminho em que se perdem razões e se descobre que, afinal, o mundo é bem maior do que o imaginámos. Abandonam-se amigos pela estrada do destino porque dentro de nós, uma voz clama mais alto: queremos voltar atrás; queremos voltar para casa; reencontrar por fim, o lar perdido da nossa infância. Agora queremos também nós ser lar. E de olhos nas estrelas, fazemos promessas ao futuro sem adivinhar que nunca haveremos de as cumprir, porque ainda somos apenas crianças!
  Pelo fim, a bruta e indomável adolescência continua a regar com ferro e fogo a imaginação. Sonham-se príncipes e princesas, saltam-se cataratas, sobem-se montanhas e cai-se. Muitas e muitas vezes.
  Recusa-se a palavra do povo que vocifera: "não há amigos"! O nosso ser nega e resiste. Busca em toda a parte a alma gémea, irmã de sonhos e divagares. E mesmo que o nosso barco naufrague, juramos a nós mesmos, havemos sempre de encontrar nos braços de um amigo, um porto de abrigo; alguém que nos açaime a dor. Mas não se enxerga, nem ao horizonte, o velame de uma alma amiga que nos recolha no mar de lágrimas em que os sonhos que se desfazem. E já não somos crianças!
  Na obscura idade do mundo dos grandes, recorremos da sentença da vida e fugimos. Não importa para onde, nem como. Fugimos. Voamos por céus que disfarçam o vento que nos rompeu as velas quando andávamos no mar.
  E passam anos sem que se vejam ou revejam amigos, nem dos novos nem dos antigos.
  Às portas a que batemos, assomam espantos e desconfortos que mais nos espantam e desconfortam. Nenhum coração reservou para nós um cantinho, mesmo pequenino, onde possam sarar nossas feridas. Todos deixaram nalguma estação de comboio, aeroporto ou paragem de autocarro, o relógio em que rodavam, juntos, os nossos ponteiros. A primeira grande lição da vida: estamos sós!
  Somos agora um casebre sem portas nem janelas que abrandem o vendaval dos dias. Encolhemo-nos aos cantos e bebemos a noite escura que nos apavora. E sem saber que a vida não acaba ali, nem assim, embriagamos as horas que nos atravessam o destino nos copos que versam lágrimas em vez de vinho. Naufragamos noites para não ver nascer os dias.
  Inexorável na sua translação galáctica, o tempo escoa por entre os seus dedos a vida que nos emprestou a juros que agora cobra em batidas do coração. O peso das tardes feitas manhãs, amodorra vontades e procrastina sonhos. A bombordo acenam, do cais, olhares que se escondem da nossa memória e nenhum conhece a palavra "saudade". Nem nós, que miramos a estibordo o caminho sem trilho que leva ao horizonte, nos damos conta de que além, muito além, hão-de brilhar novos sóis e talvez alguma manhã que não nasça tarde.
  Transidos num medo que já não dói, não sentimos na brisa o trinar dos sonhos que parece querer fazer-nos, como o canto das sereias, deitar por fim ao mar a carcaça que nos serve de casa. E o lar agora somos nós mesmos: nós e o farrapo em que nos tornámos. E voltámos a cair. Somos adultos!
  Por entre tíbias grutas, descobrimos restos de antigas fogueiras, onde se aquecia outrora a  nossa alma. Pelos recantos jazem sobras de ossadas que foram os nossos amigos, companheiros, sangue. Um ar húmido e denso brilha pelas paredes e pesa como um morto. Porém agora já temos nas pernas o balanço aprendido no ébrio passado impiedoso por onde nos fez passar o nosso destino. Não tremem nossos passos, nem há náusea que nos vergue. Estamos perdidos no meio do mar mas não temem nossas almas que dançam em pacífico murmúrio.
  Pouco nos importa que não haja porto de abrigo. Se não houver, melhor: ficaremos em paz com o nosso olhar perdido no horizonte. Chegar, agora ou nunca, deixou de ser um sonho. Pouco a pouco, dia a dia, nos foi revelado o tesouro da solidão. O navio, feito de horas e lágrimas agora secas, apenas vai ao encontro da linha que nos divide o olhar, ao longe. E já temos uma certeza: seja como for, haveremos de chegar ao outro lado do oceano dos dias.
  Com pesada carga, pouco sobeja da linha de água. Uma que outra sereia pendurada a estibordo nos encanta o passar do tempo e nos propõe rotas para destinos cheios de outros sonhos. Reaprendemos o sorriso e condescendemos o olhar quando respondemos, sem raivas guardadas: não, não vou por aí! As sereias retornam olhares marejados. Agora somos quase grandes, somos adultos, quase sábios!

  E numa manhã que afinal chegou, a nau de pando velame e liso navegar, sem capitão que não seja estrela, norte ou sul, vê ao longe a baía em que se há-de fundear. De escaler arreado vemos chegar em miríade, pagaias cheias de estranho povo. Somos Colombo e Cabral, Magalhães e Del Cano, descobridores de um novo mundo, de porões carregados de dias que, num súbito, valem mais do que os tesouros que nos trazem em oferenda, cada um daqueles que nos vem dar as boas-vindas.
  Em macio areal deixamos nosso rasto e aprendemos de novo a terra firme. Sem nada que dar em troca, além de dor e lágrimas, nos acolhe a gente velha de tez brilhante que outrora também cruzou o mar dos dias. Não há pompa nem circunstância: de filarmonia nos serve o canto mavioso da passarada em que se transformaram nossas almas; de cerimónia, os sorrisos que envergam os nossos anfitriões.
  Pelo fim da tarde, quando o céu se desfaz em rubros e se esvai em suspiros, sentados num promontório no cabo e ao fim, retornamos nosso olhar ao horizonte de onde viemos e vemos as estrelas chegar. Cada uma feita de lágrima perdida. Todas as lágrimas, feitas mar que chorámos, brilham agora no firmamento e vamos descansar, corpo e a alma refeitos, numa praia longínqua feita de sorrisos e paz. E esperamos quem não queremos que chegue: a saudade!
  Somos sábios!

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