Talvez porque tenha chegado de Manchester, cidade de que realmente não gostei ou porque acordei com um sol esplendoroso, a despertar-me de um atribulado sonho onde as memórias exaltadas se misturavam com alegrias incertas de desejos simples, como andar pela beira-mar, a verdade é que a vida atravancou-me o olhar e tudo me parece agora mais ardente e feliz. Tantos anos desta cidade e de cada vez que me afasto, volto como se fosse a primeira vez.
Ontem, quase perdia o último comboio de Charing Cross para Eltham e arrisquei ficar empancado toda a noite em Londres. Já se ouviam os apitos de partida quando me atirei ofegante para a carruagem cheia de personagens dignas de um filme.
Estranha viagem! Uma bela senhora, quarentona avançada que quase imaginei poder ser minha, não fosse a rispidez do gesto em contraste com a forma elegante como vestia, sentada à minha frente, deitava-me olhares inquisitivos e lia uma revista de arquitectura. Num canto, meia dúzia de jovens exaltados provocavam duas garotas de raça indiana até serem avisados por um par de polícias que subiram num repente a bordo. À porta um homem muito bem vestido, com cara de mafioso das estepes, saía e voltava a entrar em cada paragem depois de olhar bem para todo o lado. Só o capachinho, a esconder uma indesejável calvície, destoava do sorriso permanente e vazio com que olhava em redor. Por todo o lado as caras cansadas de homens e mulheres de todas as raças do mundo, automatizadas pela vida, perdiam-se em leve dormitar, assombrados pela dúvida e saltando para a consciência em cada paragem, olhando em desespero para identificarem o nome da estação. Os jovens atrevidos saíram em Lewisham, uma zona muito atribulada e muitos outros em New Cross pelo que, pouco antes de Eltham ficámos quatro gatos-pingados na carruagem!
Entre nós havia um homem, típico londrino educado a quem perguntei quantas estações faltavam para Eltham. Os gestos de uma finura tão pouco natural no inglês comum, o vestir acertado e um tanto invulgar denotavam um nível cultural mais elevado do que a generalidade da malta deste país. Talvez um gentleman?
Disse-me que também ia para lá pelo que metemos conversa! Notou que eu trazia enrolado um quadro do Tiago Duarte e o cuidado com que eu o transportava. - Deve ser precioso! - comentou. Respondi-lhe que sim e quando saímos em Eltham ficámos dez minutos a conversar na plataforma enquanto eu lhe mostrava o trabalho. Ficou deveras impressionado e numa breve troca de palavras combinámos encontrar-nos no "Banker's Draft", pub da esquina na Eltham High Street no sábado. Quer também mostrar-me os trabalhos de John Piper, distinto pintor e printmaker inglês (1903-1992) que tem em casa. Quem me dera que o Tiago aqui estivesse! Este é decerto um personagem que ele gostaria de conhecer. Nos poucos minutos em que trocámos opiniões, ficou claro que talvez venhamos a ser amigos. O tempo dirá!
Por tudo isto fiquei mais uma vez com a certeza de que Londres não é cidade para se trabalhar. Deve tomar-se com conta, peso e medida ou acabaremos como as caras cansadas que comutam em seu afã num dormitar ausente, ténue e quase abstrato! Talvez volte então a Lisboa e aqui regressarei todos os meses... Ou talvez fique e beba dos dias tão curtos e me deixe perder nesta mole vital que me rodeia. Os próximos dias escolherão o meu destino e mais uma vez se cumprirão desígnios que ainda não vislumbro!
E é esta força tremenda que dá forma ao "acaso" em Londres; que faz desta cidade um dos lugares mais magníficos do planeta! Há sempre uma surpresa ao virar da esquina, qualquer coisa que distingue o mero cosmopolitismo de um verdadeiro estado de alma em que cabe o mundo inteiro, venha de onde vier e faça o que fizer! Abençoada Albion que em teus braços acolhes cada olhar, cada lágrima e cada sorriso como se, por natureza, fizesse já parte de ti! Vive para sempre!
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