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Terra de moinhos

De onde se fala de paredes e chaminés de tijolo esverdeados pelo tempo imenso em que estão mergulhados numa nuvem húmida e densa que envolve toda a cidade de Manchester.

A minha viagem para Londres tinha por objectivo encontrar o motivo para o meu próximo trabalho na linha do que executei há alguns anos em Lisboa e que hoje é a base da minha arte, pelo menos no que toca à sobrevivência no dia-a-dia.  Entretanto e a propósito de uma conversa de tasca em Lisboa com o António e com o Mário, resolvi dar um salto a Manchester para visitar um amigo de longa data e que também escreve as suas linhas. Aliás foi a qualidade dessas mesmas palavras que exacerbaram a minha vontade, que era já grande, de o visitar. Aqui não referirei o seu nome a seu próprio pedido.
  Cheguei a Manchester num domingo de Janeiro às 23 horas e fui efusivamente recebido pelo meu amigo com abraços que muito bem me fizeram à alma e a deixaram acalmar por alguns momentos dos tormentos que tem vivido nestas últimas semanas. A primeira imagem que tive desta cidade, em 1997, era a de um lugar húmido e cinzento em que as faces tinham um quê de tristeza e vazio como se o futuro tivesse ficado parado num qualquer recanto obscuro desses em que esta cidade é tão pródiga. Há sempre alguma relação entre o que não gostamos num lugar depois de o conhecer e a sensação que temos a primeira vez que a conhecemos. Um pouco parecido com o que acontece com as pessoas: se temos má impressão da primeira vez que a conhecemos, o mais certo é nunca virmos a gostar dessa mesma pessoa quando aprofundamos a relação. E têm sido grandes as desilusões e pequenas as surpresas!
  Na estação de autocarros, vidrada até uma altura que aumentava a sensação de abandono que se nota ali, quatro pessoas evitavam os olhares e passavam o tempo a esquivar o medo que lhes assoberba a alma. Já vi gente mais alegre em lugares perdidos no meio de guerras distantes. Imediatamente entramos numa rua que segundo me dizem é uma espécie de Bairro Alto cá do burgo e onde nos metemos num “pub” para saborear uma cerveja. Mesmo ali, aquela sensação peganhenta que parece colar a roupa ao corpo não me abandonou. A viagem teria acabado mesmo antes de ter começado não fosse a presença do meu amigo e a vontade que tinha de conversar com ele após doze anos de afastamento.
  Quando apanhámos o autocarro para sua casa tivemos que negociar com o condutor o preço dos bilhetes e acabámos por pagar em euros visto que eu não tinha libras comigo. O homem foi simpático e fiquei surpreendido com a rapidez como aceitou a troca e acabei por lhe deixar um valor bem superior ao que teria pago se fosse na moeda local. Uma curta viagem de dez minutos levou-nos a casa e deixámo-nos ficar em amena cavaqueira regada a cerveja e chá para nos deitarmos já a manhã ia bem alta.

  No dia seguinte fui finalmente conhecer um pouco da cidade. Metemos caminho para uma praça onde se realiza um pequeno mercado diário e notei então o traço mais profundo deste lugar: nunca me passou pela cabeça que aqui vivessem tantos indianos e paquistaneses. De facto até chamam “curry mile” à imensa sequência de restaurantes e pequenos negócios geridos por gente oriunda daquelas paragens e que leva ao centro da cidade. Uma surpresa que apenas não me espanta por conhecer bem alguns outros locais onde isso mesmo acontece também com portugueses. E somos muito menos numerosos. Outra coisa me deixou surpreso: sempre tinha guardado na memória uma Inglaterra limpa e ordeira e aqui vim encontrar um lugar sujo, desorganizado e descuidado na generalidade. Uma imagem próxima da que conhecia dos livros de Dickens. Como se me tivessem transportado para o século XIX e a máquina infernal do tempo tivesse baralhado tudo numa mistura pouco provável.
  Nunca fui pessoa de me deixar levar pelas primeiras impressões ainda que, por isso, tenha passado por muitas desilusões. Tinha que fazer um esforço e pensar que teria que haver uma outra maneira de olhar as coisas. Fomos então para o “pub” onde trabalha o meu amigo em “part-time” e onde fui conhecer os seus colegas e dois ou três gatos-pingados que por ali passam os fins de tarde. Aumenta a depressão e fica na boca o sabor de uma desilusão ainda maior do que a que já espreitava por cima do meu ombro. Pela primeira vez desde que cheguei, fiquei com a certeza de que a minha viagem não iria durar mais do que estritamente necessário para que a conhecesse e pudesse escrever estas notas.
  O espírito alegre e “acelerado” do meu amigo colmatava alguma dessa cinza que me rodeava e se colava à pele como se estivesse num trópico em que as temperaturas se aproximassem do negativo. Mais uma vez regressámos a casa e bebemos mais umas cervejas e tive a oportunidade de conhecer os colegas do meu amigo e que com ele partilham a casa onde vive. Rosalina uma Ucraniana que se diz antes Russa porque vive em Ialta nas costas do Mar Negro, antiga estância balnear das elites da antiga União Soviética e que agora faz parte da Ucrânia, é uma bonita rapariga que tem um riso contagiante e é dona de uma simplicidade desarmante; Harun, indiano de Kerala e estudante que não vê a hora de voltar a casa; e Guillaume, um francês que trabalha como “croupier” e que tem um quê de serial-killer na sua postura. Há ainda um Chinês, Wei, que aqui estuda e que fala perfeitamente inglês para minha surpresa mas que só vim a conhecer ao fim de três dias. Uma mistura deveras impressionante quando se sabe que há sempre uma tendência para que as pessoas da mesma origem se juntem na mesma casa. Afinal estamos em plena era da globalização e a casa do meu amigo é mesmo um sintoma disso. Pelo menos não vim parar a um lugar cheio de “tugas” gordos, carecas e retrógrados.
  Assim foram as primeiras impressões de Manchester!

Comentários

  1. Pois, há anos que não vou a Inglaterra, mas recordo as primeiras vezes que ali estive e, de facto as coisas eram "very British" (um mundo à parte mas ordeiro e clean). Das últimas vezes, bem...fiquei com a mesma sensação quye descreveste esta Manchester. Aliás, este mesmo sintoma se passou em Zurich....contráriamente, em Portugal, hoje, há mais limpeza...será da crise e todos os trabalhos são aproveitados e levados a sério?.
    Um abraço

    Carlos Santos

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