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Chuva de Verão



  As paredes brilham, inclinadas pelo chão molhado da chuva. Os seus olhos contrastam o céu cinza e buscam vozes no ar da tarde por onde caminha: nem mira o reflexo pelas montras como gosta de fazer.
  Quem a vir julgará os seus passos pelo silêncio que gritam no ar, espelho da fronte enrugada que lhe coroa a face branca. À sua volta desabrocham passados  como flores de um monte no verão enquanto ressurgem vontades e desejos de a ver pairar como antes. Esticam-se as almas pelos estendais da velha Alfama. Só ela passa debaixo da morrinha!
  Pelo final da tarde, quando mais ninguém se lembrar da chuva e o sol lograr apagar da calçada as cópias dos prédios, ouvir-se-ão os sinos de S. Miguel em anunciado desespero por fiéis moribundos. Dos cantos e portas escuras, saltará gente ao magote e o chilreio dos pássaros fará com que a esqueçam até à hora de jantar. Depois ela será conversa. Apenas conversa de final de dia e rumor de regresso.
  Chega a casa sem saber que chegou: dói-lhe mais a alma que os pés com que calcorreou a cidade em busca de respostas que não encontra! Só ela agora se defende de si mesma e nem sequer tem com quê: o seu passado cilindrado pelo desejo de ter que fazer mais do que aquilo que fazia, troca-lhe as voltas e despeja sobre ela horas sem fim e um rodopio de porquês. E volta a não fechar os olhos. Tem medo de ver para além desse horizonte em que quis navegar. Assustam-na as ondas enormes e treme de medo perante o vento. Quer voltar ao cais mas perdeu o caminho e não trouxe a bússola. Olha as estrelas mas não sabe: não sabe porque nunca quis vê-las, nunca quis sonhar! Agora deriva pelo mar sem fim da vida que escolheu e não sabe se algum dia voltará a ter um porto de abrigo.
  A comida esfriou no prato que olha sem ver; as paredes não escutam porque nunca o fizeram e só ela apostava em que sim. A água do café chia de brutal até que a vizinha lhe bate à porta para ter a certeza de que está alguém em casa e que não deixou aquilo ao lume para sair como sempre naquela busca incessante de um lugar ao sol onde estender em paz a sua alma. É tarde: a noite chicoteia sem pejo a sua dor enquanto lá fora o luar promete o que nunca vai cumprir e olha pela janela em baço lacrimejar para ver cair por terra a vã esperança de dormir. A manhã vem encontrá-la presa aos olhos fundos que o azul cansado maquilhou. O corpo pede mas a alma não deixa: hoje não descansa ainda!
  Do outro lado da cidade sabe que ele não a espera; que já dormiu o sono que ela outrora roubou. Sabe que ele já traz no peito o fogo da paixão que ela recusou e que alguém apanhou como quem apanha estrelas cadentes. Sente, ou julga que sim, que a esta hora ele se levanta e que na cama onde reparou as suas velas se aconchega uma sereia de doces olhos e mel na voz. O arrepio de ciúme trava-lhe o movimento e espreita a janela como se esperasse ver entrar uma pomba mensageira com boas novas no bico. Quase sorri do pueril pensar que não chega a acalmar-lhe a dor.
  Da chuva da véspera apenas resta a alegria das flores nos vasos alcandorados pelas paredes decadentes das vielas seculares. Em passo tremido, desce as escadas escuras para se magoar no encontrar do sol brilhante que esconde por trás dos óculos escuros. Desaparece no rio de gente que passa e quer passar despercebida. Não é preciso: já ninguém a vê; ninguém quer saber se voltou, se fica ou vai partir. Agora é aquilo de que tanto fugiu: rotina, pura rotina!

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