São os dias que contam, não as horas. Dentro das almas há suor que escorre de um fazer por ainda não ter sido feito. A multidão escondida entre os sons da cidade, ecoa passos pela noite descoberta, como se a luz do dia tivesse deixado rasto. As paredes já não entornam o amarelo com que demarcam o escuro da vida que agora se junta, em rito de acasalamento, com as luzes da cidade. Insinua-se o negrume pelos recantos que acarinham as pedras da calçada cintilantes de passado, para deixar no ar fresco, pedaços de memória regados a morrinha de fim de Estio. Os homens esquecem que a satisfação é inimiga da criação e empanturram-se de dias largos de suor, para para poderem vangloriar-se da vida que se lhes escapa por entre os dedos.
Os crentes olham agora mais uma certeza quando passam pelas escadas da igreja, onde se espraiam outras almas na espera de algum transeunte que lhes compre um pouco de paz, em troco de uma esmola. Há sempre lugar para mais um, que ali chega por ter deixado eira e beira pendurados pelas ruas em que passou, em lugares que já esqueceu. Cada um traz consigo os despojos do que já foi, traduzidos num nada cheio de razões que se mede: uns pela loucura; outros apenas pelo espaço que o sol ocupa, num caminho da qual a vida é mestre. Cada um se esconde atrás do seu destino e olha perplexo o fim do seu mundo desfilar diante dos olhos. É privilégio de deuses, filtrado pela dor do respirar. A multidão porém, firmada nas suas certezas de amanhãs repetidos, desaba sobre si mesma. Fecha-se por trás da rotina do mundo, que lhe vende as algemas com que também a prende, e bebe a fúria diluída em medo, para que nunca chegue a recusar a miséria que lhe oferecem em troca da sua alma. E todas as almas têm um preço, nem que seja a eternidade!
O trânsito encarreirado em formigueiro, deixa passar o desfile dos últimos minutos e perde-se na insânia do regresso a casa. A pouco e pouco a calmaria estende-se, feita manta de retalhos, sobre a hora insípida do jantar. Da escadaria da igreja já não descem lamentos de pedintes, e os sonhos de asas cortadas perdem-se cambaleando na noite ébria. Da Baixa nada mais fica que vultos de gente sem rosto, e som de passos que não conhecem o sentido da palavra voltar. Enquanto isso, o som do sinos morre, como morreram já todos os que antes contavam a vida pelo seu badalar.
Comentários
Enviar um comentário
Deixe aqui o seu comentário!